Mundo
Foto: Reprodução

A retomada das atividades no Rio Grande do Sul na segunda-feira (22) reacendeu um debate: de um lado, profissionais da saúde solicitam que o governo imponha um lockdown, enquanto o setor econômico pede menos restrições, alega não ser o responsável pelo crescimento das infecções e culpa as aglomerações do Carnaval.

Nessa disputa, a ciência tem uma certeza: a principal via de transmissão do vírus é a respiratória – e não por superfície. Portanto, os maiores riscos para a infecção por covid-19 estão em locais fechados, com aglomeração de pessoas e onde o uso de máscara não ocorre o tempo todo.

— Quanto mais tempo uma pessoa ficar em ambiente fechado com muita gente, maior o risco. Uma das formas de prevenção é optar por atividades ao ar livre, porque há mais risco quando as pessoas tiram a máscara para comer em um ambiente fechado e mal ventilado. Outro local de risco é onde se canta, fala alto ou pratica-se exercício físico, o que aumenta a emissão de partículas — resume a médica epidemiologista Lucia Pellanda, reitora e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e integrante do Comitê Científico do Palácio Piratini. 

Diversos cientistas se dedicaram a pesquisar quais são os locais mais propícios para contaminações por coronavírus. Um dos estudos mais consolidados foi conduzido por pesquisadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, e publicado na prestigiosa revista Nature em novembro.

Eles cruzaram dados de localização de 98 milhões de pessoas de 10 grandes cidades norte-americanas com as infecções reportadas nas regiões dias depois. A partir daí, elaboraram um modelo matemático que quantificou quais locais mais gerariam novos casos de coronavírus, uma vez reabertos. 

O resultado é que restaurantes, academias, cafeterias, hotéis, lanchonetes e igrejas ou templos religiosos são, nesta ordem, os locais com maior potencial de risco. Restaurantes poderiam contribuir com uma cadeia de até 10 mil novos casos, enquanto que, no outro extremo, concessionárias seriam um ambiente para 10 novas infecções. 

O estudo ainda concluiu que 10% dos locais de passagem da população em Chicago eram responsáveis por 85% das infecções por coronavírus. 

Os pesquisadores da Universidade de Stanford sugerem que governos imponham restrições focadas em alguns setores econômicos, em vez de uma paralisação geral, como forma de atenuar o impacto econômico. “Se uma minoria de pontos de encontro produz a maioria das infecções, então as estratégias de reabertura que mirem especificamente pontos de alto risco devem ser especialmente efetivas”, diz o estudo. 

Mas eles ressaltam que governos precisam fornecer ajuda financeira para os comerciantes que ficarem sem trabalhar. Ou seja: não dá para mandar fechar um setor e esperar que ele suporte a crise econômica sozinho. Além disso, governos também se preocupam que o fechamento de locais de ponto de encontro públicos levem a população a se reunir nas residências, em ambiente também fechado. 

— O que contribui para a piora da pandemia é a mobilidade urbana. O fechamento do comércio é uma tentativa de reduzir essa mobilidade. O problema é todo o circuito necessário, como, por exemplo, os trabalhadores no transporte coletivo ou o horário de almoço, onde as máscaras são deixadas de lado — diz Álvaro Krüger Ramos, professor de Matemática Pura e Aplicada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador sobre indicadores da pandemia.

No Brasil, um estudo conduzido por várias instituições, incluindo a Universidade de São Paulo (USP) e a Fundação Getúlio Vargas (FGV), mapeou a dispersão da covid-19 na cidade turística de Maragogi, em Alagoas, no ano passado. Os cientistas descobriram que hospitais, postos de saúde e mercados foram os locais considerados como “superespalhadores” do vírus, e não a feira local que movimenta a cidade. Na época de coleta de dados, bares, restaurantes e academias estavam fechados. 

— Vimos que 70% das infecções acontecem nas casas, o que já é bem reportado. Mas as infecções nas casas são secundárias: a pessoa vai ao mercado, se infecta no mercado, vai para casa e infecta as pessoas de casa — afirma Tiago Pereira, professor do Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria da USP e coordenador do estudo. 

No ano passado, circulou pelo mundo uma análise feita por epidemiologistas da Universidade do Texas que elencou o risco de contágio em diferentes atividades cotidianas. As de maior chance de contaminação por coronavírus eram ir a um bar, participar de uma missa com mais de 500 pessoas, de um show ou de uma partida esportiva. A seguir, apareciam frequentar cinema, academia e comer em um bufê. 

A ciência sabe, hoje, que o risco de contágio individual pode ser atenuado pelos protocolos sanitários: se houver maior limitação no número de pessoas, se os clientes usarem máscara cobrindo todo o rosto e se o indivíduo ficar próximo à janela ou sentado ao ar livre.

O professor de Matemática da USP Tiago Pereira pondera que o perigo para o coronavírus é o fato de haver aglomeração – ou seja, não é o restaurante ou a academia em si, mas a forma como as pessoas se comportam nesses locais, o que exige fiscalização para que os estabelecimentos sigam à risca as medidas sanitárias. 

— Há indústrias com mais de mil funcionários almoçando em um restaurante grande. Se o restaurante em si fosse tão perigoso, todas as indústrias deveriam ter grande contaminação e fechariam, o que não acontece, porque elas seguem protocolos rígidos para não fecharem. O problema é a aglomeração, não o ambiente. Um restaurante pode seguir bem os protocolos e não ter aglomeração — acrescenta Pereira. 

Mas pesquisas vêm demonstrando que há dificuldade em implementar os protocolos sanitários na prática, apesar da boa vontade dos estabelecimentos. Um estudo financiando pelo governo da Escócia, publicado no Journal of Studies on Alcohol and Drugs, investigou o cumprimento das medidas sanitárias em bares abertos após o lockdown no país. Apesar das reformas e do distanciamento, tudo ia por água abaixo com os clientes bêbados e funcionários que nem sempre usavam máscaras. 

— Os estabelecimentos expressam uma vontade de trabalhar segundo os protocolos, mas houve desafios práticos. Foram feitos grandes esforços para mudar a arquitetura dos bares, mas problemas comuns incluíam funcionários não usarem equipamento de proteção ou a gestão de banheiros, filas e de outros pontos. Também observamos vários incidentes de grande preocupação, como clientes gritando, abraçando ou interagindo repetidamente e muito próximo aos funcionários, o que foi raramente resolvido — declarou Niamh Fitzgerald, autora do estudo, em texto de divulgação do material, ressaltando que o fechamento de bares causa um impacto fortíssimo aos proprietários e trabalhadores. 

Profissões de risco

Outro estudo, publicado no conceituado British Medical Journal, mostra as profissões com maior risco para a covid-19. Depois de profissionais da saúde, estão trabalhadores da assistência social, da educação, do setor de bares e restaurantes e, por fim, do transporte público. 

Além dos estudos mostrando o maior risco de contágio, há uma série de pesquisas que apontam a relação entre reduzir a mobilidade da população e o controle da pandemia – nota técnica da última sexta-feira (19) do Comitê Científico do Palácio Piratini destaca ao menos 10 pesquisas científicas comprovando a eficácia do fechamento temporário de diferentes setores. 

— Qualquer setor que a gente abra vai ter um impacto. Aumento de mobilidade aumenta os contatos entre as pessoas. Entendo as dificuldades das pessoas que estão paradas, mas a conta que a gente está fazendo é a saúde dos negócios contra a saúde das pessoas. Chegamos a esse ponto. Vamos ter que escolher entre vida ou emprego por uma falta de suporte para não precisarmos fazer essa escolha — afirma a epidemiologista Suzi Camey, professora da UFRGS e outra integrante do Comitê Científico.

Quando a pandemia atinge patamares perigosos, as atividades devem ser restritas para evitar uma piora ainda maior, argumenta Marcio Bittencourt, médico do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da USP.

— Argumentos como de que a culpa é do Carnaval são simplistas. Óbvio que um evento de aglomeração contribuiu, mas nunca é apenas um evento ou poucos, é sempre uma combinação. Independentemente da causa passada, nos encontramos em um momento de transmissão comunitária tão intensa que a única estratégia é termos uma contenção muito grande do contato interpessoal. Talvez alguns lugares respeitem os protocolos e não sejam a causa principal, mas, com uma transmissão comunitária muito intensa, eles podem participar da transmissão — diz o médico. 

GZH