Polêmica
Foto: Lauro Alves / Agencia RBS

Moradores da Vila da Palha, uma das mais antigas e tradicionais localidades de Pelotas, foram surpreendidos no início do ano com uma inusitada transação imobiliária. A Igreja Nossa Senhora Aparecida, erguida pela comunidade em 1980, foi vendida pela Mitra Arquidiocesana por R$ 40 mil. 

O antigo templo católico agora está sendo transformado em residência familiar. Comprado por um casal de moradores da vila com uma entrada de R$ 5 mil e promessa de 350 parcelas mensais de R$ 100, o prédio já não guarda mais as características religiosas, como a cruz e ornamentos sacros. A fachada foi pintada, paredes foram erguidas e o banheiro, reformado. O salão onde antes foram celebradas milhares de missas, catequeses, batizados e casamentos está prestes a se tornar sala de estar.

Uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, duas pequenas capelas de novena, um estandarte e uma bandeira do Divino Espírito Santo foram recolhidos pelos fieis. Os objetos estão sob guarda da aposentada Eloá Fonseca Rodrigues, que de 1982 a 2016 foi coordenadora da paróquia, auxiliando os sucessivos padres em todas as atividades religiosas. 

— Venderam de porta fechada. Chegou um freteiro e levou duas charretes carregadas com altar, bancos, mesas e outros acessórios. Disseram que poderiam pegar ou então iriam se desfazer — conta Eloá, de 74 anos. 

A igreja ocupava um terreno de 129,17 metros quadrados, logo no início da Avenida Augusto de Saint-Hilaire, a única via da localidade. Batizada com o nome do naturalista francês que visitou charqueadas das redondezas dois séculos atrás, a rua de chão batido tem cerca de um quilômetro de extensão, desembocando no Arroio Pelotas. No total, são 126 lotes que foram sendo ocupados irregularmente ao longo dos anos e hoje abrigam pouco mais de 200 famílias nos fundos do bairro Areal. 

Nos anos 1980, a comunidade se organizou para construir o templo. Registros mantidos pelos moradores mostram pagamentos de mensalidade entre R$ 3 e R$ 10, conforme a disponibilidade financeira de cada um. Um dos construtores foi Aldemar Rodrigues, 80 anos, que trabalhava em empresas de beneficiamento de arroz e nas férias erguia as paredes do prédio de 50 metros quadrados.

— O pessoal da Mitra nunca me deu um quilo de cimento, não me alcançou nem um copo d’água. Por isso a gente sofre tanto com essa venda, porque foi construído com o nosso suor — desabafa Rodrigues. 

A negociação foi concretizada em janeiro e teria ocorrido sem qualquer aviso prévio. Segundo relatos dos moradores, nem mesmo no grupo de WhatsApp da comunidade houve anúncio formal de que o imóvel estava à venda. 

— A igreja estava fechada por causa da pandemia. Mas no início do ano começou uma boataria de que estariam querendo vender. Quando a gente foi procurar o pároco, disseram que já estava vendida. Fomos atrás do bispo (Dom Jacinto Bergmann), mas ele nem quis falar conosco, isso que recém tinha rezado uma missa sobre compaixão — reclama a faxineira Karina Swenson Pereira. 

Na Vila da Palha, a aquisição do prédio causou discórdia entre os fieis e o casal de compradores. Donos de uma mercearia ao lado da antiga igreja, Nancy e Luiz Oliveira adquiriram o imóvel para a filha mais nova, Ana Carolina, 28 anos, viver com o marido e a filhinha de quatro anos. Antes, eles já haviam ocupado a antiga sede da associação de moradores, que estava em ruínas e foi reformado para moradia da primogênita. 

— A associação estava desmanchada, as paredes caídas. Minha filha limpou e construiu lá. E essa casa aqui (a antiga igreja) agora é minha. Botaram à venda e eu comprei. Comprei da Mitra Diocesana. A igreja estava desativada, tinha mato, o pessoal não frequentava mais — afirma Nancy, exibindo o contrato de compra e venda.

Lauro Alves / Agencia RBS
Oliveira exibe o contrato de compra e venda entre a família e a dioceseLauro Alves / Agencia RBS

O suposto abandono da igreja também é apontado pelo padre Marcus Bicalho Pinto Rodrigues como justificativa para a venda. Responsável por 11 templos na Paróquia Senhor Ressuscitado, padre Marcus é quem assina o contrato em nome da Arquidiocese de Pelotas. Segundo ele, já em 2005 o então pároco, frei Júlio Ribeiro, mandava cartas ao bispo relatando que a comunidade não se reunia e não era mais de maioria católica — argumento rebatido pelos moradores.

— Eu cheguei à paróquia em 2022 e visitei todas as comunidades. Ali havia muitas contas de água e luz a pagar, a parte elétrica estava deteriorada, colocando em risco o prédio. O Conselho da Paróquia investiu R$ 5 mil, depois fizemos uma reforma e gastamos mais R$ 10 mil. Cheguei a celebrar missa lá com só duas pessoas. Não é uma comunidade que reúna pessoas católicas. Entendemos que era importante vender e investir onde tem mais católicos — afirma o sacerdote. 

Natural de Minas Gerais, padre Marcus é um dos mais influentes membros da Mitra em Pelotas. Após alguns anos afastado da batina, ele recebeu autorização do papa Francisco em 2019 para voltar a presidir celebrações dos sacramentos e atualmente, além de pároco, é administrador ecônomo da Arquidiocese, vice-reitor da Universidade Católica de Pelotas, vice-presidente do Instituto de Menores Dom Antônio Zattera e diretor da Rádio Universidade. Segundo ele, a reunião na qual foi decidida a venda do templo contou com a participação de apenas três moradores, o que demonstraria a escassez de católicos na comunidade,  e agora há somente uma possibilidade de o negócio ser desfeito.

— É só o bispo me tirar daqui e botar outro padre que acredite que isso é possível — pontua. 

A prefeitura, porém, está analisando a situação. Em 2018, a Secretaria de Habitação deflagrou o processo de regularização fundiária da Vila da Palha, mas muitos lotes seguem irregulares. De acordo com o secretário de Habitação, Ubirajara Leal, o terreno onde a igreja foi erguida ainda pertence ao município e não poderia ser comercializado. Todavia, no Cartório de Registro de Imóveis da 1ª Zona de Pelotas o imóvel surge como de propriedade de Carlos Alberto Matias Gama, um ex-diácono.

— Estamos investigando essa questão. Fizemos a regularização da área e esse imóvel ficou de fora por causa das dúvidas que pairam sobre a posse. Tem uma declaração do pessoal da igreja de que fizeram a obra, a comunidade diz que foi ela que fez. Pela prefeitura, o terreno pertence ao município e qualquer venda é irregular. O caso está sendo estudado pela Procuradoria Jurídica do município — afirma Leal. 

Enquanto não há definição, os fieis da Vila da Palha precisam caminhar cerca de 800 metros para rezar na igreja mais próxima.

Participe do nosso grupo de WhatsApp!

https://chat.whatsapp.com/F8ClYgHeDrF0GDpP7ogNKR

Gaúcha ZH