Denúncia
Ana Paula Brocco, que tem casamento marcado no Caribe, recebeu R$ 600. Foto: Rede Social

Que tal casar em uma praia paradisíaca no Caribe, na beira do mar, e passar a lua de mel em um resort de luxo? A cerimônia tem até data marcada. Um site foi criado especialmente para contar a história dos noivos. Lá, todas as informações para os convidados poderem chegar ao destino. Ana Paula Brocco, a noiva, está na lista de beneficiados com R$ 600 do auxílio emergencial do governo, criado para autônomos, trabalhadores informais, microempreendedores individuais e desempregados atingidos pela pandemia.

Nas redes sociais, Ana Paula, que é de Espumoso, Noroeste, mostra que já esteve no Caribe e em Paris. Questionada sobre o recebimento do auxílio, por telefone, ela confirma que recebeu e depois fica muda.

A advogada de Ana Paula, Nicole Frohlich Soares, diz que a cliente se enquadra nos critérios do programa e que a lua de mel será bancada por um prêmio que o noivo ganhou de um banco. Ana Paula conseguiu na Justiça impedir a publicação da reportagem  a respeito do seu caso, mas a liminar foi derrubada (leia mais abaixo).

Denúncias como essa chegaram ao Grupo de Investigação da RBS (GDI) por meio de cidadãos revoltados com o que consideram ser injustiça. De um lado, pessoas sem computador (ou que não conseguem acessar o sobrecarregado site da Caixa Econômica Federal) passam noites em frente a agências bancárias, na tentativa de se credenciar no programa.

Numa outra ponta, gente com bom padrão de vida, escolarizada e com internet veloz consegue rapidamente o benefício, mesmo que estejam longe de uma situação de carência. Essa disparidade tem se repetido pelo Rio Grande do Sul, como constataram os repórteres. Proliferam entre os 53,9 milhões de brasileiros contemplados com o auxílio governamental pessoas com residência própria, carro e atividade econômica constante.

Entre os identificados pelo GDI como beneficiários do auxílio (que varia de R$ 600 a R$ 1,2 mil, conforme o caso) estão um arquiteto de renome e um sócio de imobiliária em Veranópolis. Uma dentista, donos de empresas e políticos (incluindo alguns de seus familiares) em Nova Roma do Sul. Uma funcionária pública em Nova Pádua. Um empresário em Encantado. E, também, essa mulher de Espumoso que abre a reportagem e está com casamento marcado para acontecer em Punta Cana (na República Dominicana).

Em Tapejara, no Norte, a nutricionista Letícia Roman Guzzo aparece como beneficiária de R$ 600. Valor equivalente a seis consultas na clínica da qual é sócia na cidade. Ligamos para lá:

Repórter — Quanto custa uma consulta?

Recepcionista — R$ 110, no particular.

Nas redes sociais, Letícia aparece em fotos em Paris e Barcelona. Fez cruzeiro em navio. Perguntada sobre o auxílio, não respondeu a mensagens nem atendeu ao telefone.

Revolta a muitos cidadãos que o auxílio governamental seja retirado por pessoas com bom poder aquisitivo. Tanto que a cidade de Veranópolis, na Serra, amanheceu no dia 10 de junho com uma faixa estendida ao lado do estádio municipal de futebol, na qual se pode ler:

Em Veranópolis, faixa em protesto. Foto: Arquivo Pessoal

“Sou grandão e peguei os 600tão…Bem-vindos a Veranópolis! Aqui são mais de 2.500 auxílios-emergenciais, muitos deles irregulares. Quase 2 milhões do dinheiro público na primeira parcela. A corrupção começa em cada um”.

O homem que colocou a faixa de protesto não quis se identificar. Uma faixa semelhante apareceu, três dias depois, em Garibaldi, também na Serra.

O superintendente da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, delegado José Dornelles, promete agir contra fraudadores, usando para isso de cruzamento de dados e ferramentas cibernéticas.

— De uma maneira geral, os crimes praticados são invasão de dispositivo informático, furto mediante fraude, modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações, estelionato majorado, e inserção de dados falsos em sistema de informações, conforme especificidades de cada caso — resume Dornelles.

As irregularidades no auxílio emergencial são decorrência de fraude, oportunismo ou engano? Um pouco de cada, constatam órgãos de fiscalização, como o Tribunal de Contas da União (TCU), que já identificou 620 mil brasileiros suspeitos de terem recebido o auxílio emergencial de forma ilegal. Parte deles, em território gaúcho. As possíveis irregularidades foram constatadas a partir de cruzamentos de dados e de declarações de renda, CPF e bens em nome dos beneficiados.

Isso ocorre porque basta atestar necessidade e descobrir brechas nas categorias profissionais contempladas. É o caso de quem tem microempresa individual (MEI): há um trecho da portaria governamental que prevê que esse tipo de profissional pode ser contemplado. Mas grande parte desses donos de MEI não se enquadra em outra exigência do benefício: só tem direito ao auxílio quem não recebeu, em 2018, rendas tributáveis acima de R$ 28,5 mil. Isso significa, em média, R$ 2,3 mil de rendimentos ao mês (formais ou informais). Mesmo assim, esses microempresários recebem o auxílio, por falhas na fiscalização do programa.

Como denunciar

O canal para registro de denúncias de fraudes é o sistema Fala.Br, disponível neste link ou pelos telefones 121 ou 0800— 707 —2003.

Critérios para receber o auxílio emergencial

Ter mais de 18 anos de idade; salvo no caso de mães adolescentes

Não ter emprego formal ativo

Não receber benefícios pagos pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), como aposentadoria, pensão ou Benefício de Prestação Continuada (BPC)

Não ser beneficiário do seguro-desemprego, seguro defeso ou de programa de transferência de renda federal, com exceção do Bolsa Família

Pertencer a família com renda mensal por pessoa de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou com renda mensal total de até três salários mínimos (R$ 3.135)

Em 2018, não ter recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70, ou seja, em 2019 não precisou declarar imposto de renda

Ser microempreendedor individual, contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social ou trabalhador informal, mesmo que desempregado

620 mil pagamentos bloqueados no país

A Controladoria-Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU) analisaram 30,5 milhões de pagamentos do auxílio emergencial desde abril. Foram encontradas inconformidades em cerca de 620 mil benefícios, o equivalente a 2% do total, conforme dados obtidos pelo programa Fantástico, exibido pela RBS TV e Rede Globo. Já a CGU identificou muitos donos de bens ou de renda incompatíveis para o recebimento do auxílio, tais como:

 86.632 proprietários de veículos com valor superior a R$ 60 mil

 74.682 sócios de empresas que possuem empregados ativos

 22.942 beneficiários com domicílio fiscal no exterior

21.856 proprietários de embarcações de alto custo

17 mil mortos em cujo nome foram feitos pagamentos do benefício

85 doadores de campanha em valor maior do que R$ 10 mil

O que diz o Ministério da Cidadania

O Ministério da Cidadania, responsável pela gestão do auxílio emergencial, afirma trabalhar diuturnamente para a evolução do maior benefício já criado, em âmbito nacional, para assistir a população mais vulnerável. Os recursos destinados para essa ação já passam da casa dos R$ 150 bilhões. A tarefa está longe de ser fácil, diz o ministro Onyx Lorenzoni, pela exígua velocidade para construir, implantar e revisar de forma constante cada processo de trabalho.

O auxílio emergencial conta com um modelo de governança que embute parcerias de controle e fiscalização com a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU). Isso gera trilhas de auditoria que são usadas para identificar, tomar ações de recuperação e retroalimentar com informações para a melhoria na análise de cada lote de solicitações do auxílio emergencial. As informações inseridas no site e no aplicativo do auxílio emergencial são cruzadas com vários bancos de dados oficiais de documentação e situação econômica e social. Além de responder por crimes, os que burlam a lei estão sujeitos a ressarcir os valores recebidos.

RBS TV censurada durante 11 dias

Por 11 dias, a RBS TV esteve impedida de publicar reportagem sobre o auxílio emergencial sacado pela comerciante Ana Paula Pagnussatti Brocco, de Espumoso, Noroeste. Ela ingressou na Justiça e conseguiu, em duas instâncias, censura prévia sobre notícia que questiona se ela preenche os critérios para receber o benefício.

O juiz Daniel da Silva Luz, da comarca de Espumoso, concedeu liminar impedindo que o nome e a imagem dela fossem “publicados” e “vinculados” em reportagem. Foi determinada multa de R$ 50 mil por divulgação. A RBS TV recorreu da liminar, com o argumento de que a Constituição brasileira proíbe a censura prévia. A liminar que censurava foi mantida pela desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza, da 19ª Câmara Cível do TJ. A censura foi derrubada, dia 26, em despacho da própria desembargadora Maria Isabel, que reconsiderou sua decisão inicial. A magistrada considerou que não há uma “situação excepcional” a justificar uma intervenção prévia à liberdade de imprensa.

GZH