Um grupo de médicos que deveria ficar a postos para receber ligações do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em Porto Alegre ignora escalas, deixa o local de trabalho no meio do expediente e submete pessoas que precisam de socorro a esperas angustiantes ao telefone.
A situação foi descoberta pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI) depois de acompanhar por dois meses a rotina de profissionais que atuam entre a noite e a madrugada na maior central de atendimento do Samu do Estado, que fica na Capital.
A reportagem teve acesso a relatórios de plantões, escalas de trabalho e extratos de atendimento de pelo menos três profissionais. A equipe confrontou os documentos com flagrantes de chegadas e saídas de profissionais fora do horário estabelecido pelas escalas. A irregularidade foi confirmada pelo coordenador do serviço. Em nota, a Secretaria Estadual da Saúde disse que abriu um processo para apurar supostas irregularidades.
No Rio Grande do Sul, são 269 municípios atendidos pela central de Porto Alegre, cobrindo 70% da população gaúcha e controlada pelo governo estadual. São 70 mil ligações por mês. O sistema funciona da seguinte maneira: quando um morador de uma das cidades atendidas precisa de socorro do Samu e liga para o telefone 192, a ligação cai nesta central. Também é por aí que chegam aos chamados de outras cidades que precisam transferir pacientes entre municípios por ambulâncias.
Inicialmente, um telefonista atende ao chamado, o que geralmente ocorre de forma rápida. Depois, a ligação vai para uma fila de espera para que os médicos reguladores prossigam no atendimento e, caso necessário, acionem as ambulâncias que vão prestar socorro. E é nessa etapa que ocorre a situação descoberta pelo GDI.
Durante a noite, madrugada e início da manhã, médicos que deveriam estar disponíveis para o atendimento das ligações não cumprem integralmente suas jornadas de trabalho. Foi a indignação de um trabalhador diante desse cenário que gerou a informação ao GDI. O enfermeiro Cleiton Felix compartilhou durante dois meses dados sobre a rotina de plantões incompletos. No final de junho, Felix pediu exoneração.
Segundo ele, médicos não aparecem para trabalhar ou, se dão expediente, cumprem apenas um terço da carga horária.
— Depois que escurece, das 19h em diante, existe um revezamento. É uma escala da escala, pactuada entre os profissionais que se ajustam para fazer um plantão mais curto — explica Felix.
Em tese, a central do Samu na Capital deveria ter 10 médicos atendendo simultaneamente em plantões de 12 horas no turno da noite, segundo o Ministério da Saúde informou em nota (veja abaixo). A escala atual conta com sete profissionais, mas eles não trabalham simultaneamente, como comprovado pelo GDI durante três madrugadas acompanhando os plantões. Dentro deste período de 12 horas, por conta própria, os médicos se dividem e atuam por cerca de um terço do que deveriam.
Numa escala enviada ao Ministério da Saúde, aparecem ainda mais profissionais do que atuariam nos turnos, incluindo nomes como o do coordenador do Samu no Estado, o médico Jimmy Luis Herrera Espinoza, que nem trabalha presencialmente na central.
Para a função, segundo o portal de transparência da Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS), Espinoza recebe um salário de R$ 22.090,50. Ainda assim, ele presta serviço numa clínica em Porto Alegre durante a semana, sendo que, em três dias, trabalha no local das 7h às 19h.
— O que demonstra é que o Samu virou um bico. E ele é conhecido, no meio, como bico porque não cobra horário — lamenta Felix.
Ausência durante as madrugadas
Como denunciado por Felix e verificado pelo GDI, o principal foco dos médicos que não cumprem horário são os turnos noturnos. Dois exemplos ocorreram no dia 27 de junho.
O médico Renan Rennó Schumann, que recebe um salário de R$ 11.045,25, trabalharia das 19h às 7h do dia seguinte, conforme sua escala. Mas o flagrante feito pela reportagem mostra que o médico chegou para trabalhar perto da meia-noite, permaneceu por quatro horas na central de regulação e foi embora às 4h.
Os relatórios internos obtidos pelo GDI confirmam: naquela madrugada, ele atendeu ao primeiro chamado às 23h59min, e ao último, às 3h57min. Houve outros dias em que Schumann trabalhou menos. Com base no relatório de plantões do mês de junho, o médico teria de ter cumprido 12 plantões, que somariam 96 horas. Mas ele atuou em apenas 29 horas no período.
Na mesma madrugada, outra médica, Fabiane Andrade Vargas, com salário de R$ 7.287,84, chegou de carro por volta de meia-noite e foi embora às 4h. Seguindo o mesmo comportamento e cumprindo apenas quatro das 12 horas de sua jornada obrigatória. Os relatórios de atendimento daquela madrugada corroboram o descaso. A profissional começou a atender às 23h56min e terminou às 4h5min.
O GDI também conseguiu acesso a escalas de trabalho de Fabiane no mês de junho. Cruzando dados do que deveria ter cumprido com os atendimentos prestados, os sete plantões que a médica fez em junho deveriam somar 82 horas de trabalho. Porém, ela só esteve presente por 36 horas no posto onde deveria atender.
Contrapontos
O coordenador do Samu no Estado, Jimmy Luis Herrera Espinoza, confirmou possíveis descumprimentos de horário.
O Conselho Regional de Medicina (Cremers) não quis comentar o caso.
O GDI também procurou os médicos Fabiane Andrade Vargas, Renan Rennó Schumann e Giordana Vargas Correa, mencionados nestas reportagens, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Fabiane Andrade Vargas pediu demissão na quarta-feira (23), conforme apurado pelo GDI.
A Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) negou ter conhecimento do problema e instalou uma comissão de sindicância após o contato do GDI.
O Ministério da Saúde afirmou que irá fazer uma visita técnica à central estadual do Samu em Porto Alegre para verificar as informações trazidas pelo GDI.
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Gaúcha ZH