Educação
Foto: TABA BENEDICTO / ESTADÃO CONTEÚDO

Do outro lado da linha telefônica, o pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Daniel Cara interrompe uma resposta e, depois de alguns segundos de silêncio, retoma o diálogo com GZH:

— Desculpe, é que tenho recebido muitas denúncias e ameaças de violência em colégios no celular. Chegou mais uma agora — explicou-se o especialista no tema da violência no ambiente estudantil.

Em questão de dias, a enxurrada de relatos e suspeitas já acumulava mais de mil mensagens no telefone do professor, que é uma das referências nacionais na área e ajudou a elaborar um documento sobre esse tema no grupo de transição do atual governo federal. Na avaliação de especialistas, a onda de atentados e de ameaças sobre as escolas se consolidou devido à tolerância em relação à proliferação do discurso de ódio pela internet nos últimos anos, que permitiu a grupos vinculados à extrema direita migrarem de fóruns obscuros para redes sociais de uso comum e influenciar um número cada vez maior de jovens, inclusive no Rio Grande do Sul.

O ciberespaço se tornou um ponto central de cooptação de adolescentes e articulação de ataques nos últimos anos. Na quarta-feira (19), por exemplo, policiais cumpriram mandados em cinco Estados e apreenderam 10 suspeitos de utilizar uma plataforma online para combinar agressões.

Dados da Safernet, organização de defesa dos direitos humanos no mundo virtual, confirmam o avanço do radicalismo digital: no ano passado, foi registrado um número recorde de 74 mil relatos de crimes envolvendo discurso de ódio em espaços como fóruns ou redes sociais, em uma disparada de 67,7% em relação a 2021.

Para Daniel Cara, essa escalada indica que o poder público e as empresas de tecnologia não fizeram o necessário para monitorar e barrar as manifestações contra segmentos da sociedade como mulheres, negros ou a população LGBT+:

— Houve permissividade em relação ao discurso de ódio, o que gera uma situação favorável para a ocorrência desses ataques em escolas. É óbvio que nenhuma autoridade pública apoia ou concordaria com esses atentados, mas, nos últimos anos, houve permissão por parte de algumas dessas autoridades a manifestações misóginas, racistas e sexistas.

Os registros disponíveis demonstram que esse cenário coincidiu com um salto jamais visto da violência escolar no Brasil. Um levantamento realizado por GZH com base em uma pesquisa da Universidade de Campinas (Unicamp) e em casos noticiados pela imprensa indica que, desde 2002, houve pelo menos 24 atentados que deixaram feridos ou mortos. Pouco mais da metade (13) ocorreram desde o ano passado.

O professor e pesquisador no Departamento de Estudos de Mídia na Universidade da Virgínia (EUA) David Nemer afirma que a permissividade com o clima de agressividade no universo virtual envolve diferentes poderes e as chamadas big techs:

— Viu-se uma tolerância muito grande, sim, que podemos ver pelo grande número de denúncias e de ações judiciais envolvendo questões como racismo ou homofobia em plataformas online. É uma falha sistêmica, porque o sistema judicial não consegue absorver todas as denúncias, é muito demorado, não há cobrança de fato por parte das autoridades perante as plataformas, e as plataformas ficam muito aquém no combate a esse tipo de discurso porque só funcionam na base da punição. Como não há punição, são mais do que tolerantes.

Radicais mudaram perfil de atuação nas redes

David Nemer, que é especialista em antropologia da informática, sustenta que sempre existiram extremistas na internet. Mas, recentemente, houve uma mudança em seu perfil de atuação.

— Eles costumavam ocupar espaços na periferia do debate online, na dark web (parte mais oculta da rede que só pode ser acessada com ferramentas ou autorizações específicas), em plataformas de difícil acesso ou em fóruns conhecidos só entre eles. Com a popularização de aplicativos que permitem troca de mensagens criptografadas, como WhatsApp ou Telegram, vieram mais para o centro do debate público — alerta o especialista brasileiro radicado nos EUA.

Essa mudança de posicionamento consolida a ascensão de uma extrema direita ultraconservadora que privilegia o status de homens brancos em detrimento de mulheres, negros e gays, muitas vezes associada a movimentos neonazistas. Símbolos que remetem ao reich alemão foram utilizados no ano passado, por exemplo, por um adolescente que jogou bombas contra uma escola em Monte Mor (SP), por outro que fez quatro vítimas a tiros em Aracruz (ES) e, neste ano, por um adolescente de 14 anos de Maquiné, no litoral gaúcho, detido sob suspeita de planejar um ataque a um colégio. Em sua casa havia materiais como bandeira nazista e foto de Adolf Hitler.

Nem sempre, porém, os agressores se unem a esses grupos por razões politicamente complexas:

— Muitos não têm o neonazismo como referência de ação política, mas apenas de discurso de ódio.

O ambiente de intolerância é acompanhado pela disparada no número de armas nas mãos da população brasileira. O mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta que a quantidade de registros ativos de caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (os chamados CACs) explodiu de 117 mil em 2018 para 673,8 mil no ano passado — um crescimento de quase seis vezes ocorrido no mesmo período em que as escolas se tornaram alvos.

Uma compilação feita por GZH aponta que 13 entre 24 episódios que deixaram mortos ou feridos no país foram concretizados com o uso de armas de fogo.

— Há traços racistas e misóginos em alguns casos, e outros são jovens que se dizem vítimas de bullying, pegaram armas disponíveis nas suas casas e foram fazer uma forma de justiçamento. Então, também há uma banalização da autodefesa e das armas — avalia o professor do departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Jefferson Barbosa, pesquisador do extremismo político no Brasil.

Aliciamento inclui memes, músicas e jogos virtuais

Tragédias registradas em escolas brasileiras, nos últimos anos, com frequência têm origem em mensagens aparentemente inocentes distribuídas pela internet. Memes, piadas e jogos virtuais estão entre as ferramentas mais utilizadas por grupos de extrema direita para cooptar jovens e estimulá-los a agir como “lobos solitários” para cometer atentados.

O perfil mais visado é o que transparece nos registros policiais depois dos massacres: adolescentes brancos do sexo masculino e heterossexuais, geralmente com algum tipo de frustração. Sentimentos de rejeição, inadequação e reação contra bullying e outras formas de violência agravam a vulnerabilidade frente ao discurso de ódio.

— O ambiente digital (…) é uma esfera para disseminação e vocalização de ideias contra minorias, misóginas, racistas, antidemocráticas, e estabelece ainda uma possibilidade de articulação para indivíduos que não se sentem totalmente integrados à sociedade — sustenta o professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do Observatório da Extrema Direita Odilon Caldeira Neto, lembrando que o movimento incorpora também pessoas de idade mais avançada.

O documento “O Extremismo de Direita entre Adolescentes e Jovens no Brasil: Ataques às Escolas e Alternativas para a Ação Governamental”, elaborado por um grupo de acadêmicos no final do ano passado, lista algumas das formas mais comuns de aliciamento de grupos radicais nos últimos anos. Uma das estratégias é o uso de humor — memes “irônicos” que carregam referências nazistas, fascistas ou de discurso violento com o objetivo de desumanizar determinados grupos sociais e normalizar a agressividade.

Nem falo de deep web. A rede aberta vem sento utilizada para cooptar jovens também no Estado

ANA LUZA CARUSO

Delegada da Polícia Civil

O trabalho descreve ainda o mecanismo de cooptação por meio do universo de jogos online: “o crescente uso das comunidades de ‘gamers’ e dos chats de conversa em ‘games’ têm funcionado como mecanismo de ‘sedução’ de jovens de todo o mundo, a fim de angariar simpatia a ideias de extremismo de direita, de forma ainda mais intensificada durante o período da pandemia da covid-19. Quando a simpatia é manifestada nesses ‘chats’ públicos, há um convite para a migração para espaços de mensagens tais como Telegram e WhatsApp”. Sempre que um massacre é cometido, essas redes compartilham imagens dos autores procurando idolatrá-los e, assim, inspirar outros adeptos a praticar as mesmas ações.

O Conselho de Direitos Humanos da Assembleia Geral da ONU, ainda em 2019, já havia emitido um alerta sobre o perigo do engajamento de jovens em sites e transmissões promovidos por líderes neonazistas com uso de “músicas, games, atividades lúdicas, uso de personagens de desenhos animados e memes”. Mais recentemente, ganharam força conteúdos relacionados à chamada “machosfera” — ecossistema que inclui fóruns de discussão, influenciadores digitais, podcasts e outros canais que compartilham a misoginia como traço comum. Esses caminhos tortuosos até a intolerância também são trilhados no Rio Grande do Sul.

— Não falo nem de deep web (espécie de “camada” mais difícil de ser acessada e monitorada da internet), mas da rede aberta mesmo, que vem sendo utilizada para cooptar jovens aqui no Estado também. Geralmente, o aliciador não chega dizendo que é neonazista ou algo parecido. Começa com um discurso menos chocante, dizendo ser nacionalista, por exemplo, e só depois muda para algo como a negação do Holocausto — afirma a delegada da Polícia Civil gaúcha Ana Luiza Caruso, que responde interinamente pela Delegacia de Combate a Crimes de Intolerância.

Daniel Cara, um dos autores do documento sobre como se articula a violência escolar no Brasil, lembra que a mobilização desses núcleos de extremistas ocorre de forma ainda dispersa, sem uma organização mais centralizada por todo o país:

— Não há uma estrutura organizativa com objetivos comuns traçados. Se houvesse, o problema seria maior porque teríamos uma letalidade mais alta. Mas o fato de ser algo pulverizado, por outro lado, dificulta a investigação, o monitoramento e, por consequência, a prevenção.

A Polícia Civil e o Ministério Público confirmam que monitoram suspeitos e têm apurações em andamento envolvendo células radicais no Estado, mas detalhes são mantidos sob sigilo.

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Gaúcha ZH