Em 2020, após formar-se o primeiro doutor indígena pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Bruno Ferreira Kaingang disse que queria ser o primeiro professor de sua etnia na instituição. Dito e feito – após quase 90 anos de história, a universidade ganhará não somente um, mas dois professores indígenas.
Bruno e a pesquisadora Rosani de Fátima Fernandes foram nomeados e farão parte do corpo docente da Faculdade de Educação (Faced). Eles foram selecionados por concurso público docente voltado à área de educação para as relações étnico-raciais e educação indígena. Ambos pertencem ao povo kaingang, um dos mais numerosos do Brasil, e vão tomar posse em maio.
O Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS instituiu o sistema de reserva de vagas em 2016, destinado a candidatos autodeclarados pretos ou pardos, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência, pessoas surdas, travestis ou transexuais, refugiados ou com visto humanitário e migrantes em situação de vulnerabilidade social.
— Termos dois doutores indígenas em primeiro e segundo lugar no concurso evidencia essa tomada de posse das pessoas indígenas nos espaços intelectuais, vemos essa transformação em diversas universidades, tanto a nível docente como discente. Os professores são extremamente competentes e vão revolucionar a universidade. Esperamos que a entrada deles possa abrir caminho para ampliarmos a legislação, para que haja concursos públicos para professores voltados aos indígenas — diz Marcello Morais de Assunção, coordenador da área de Educação das Relações Étnico-raciais na Faced.
Já está agendada para 10 de maio, às 10h, a aula inaugural da professora Rosani, na sala 102 da Faced. A atividade “Povos indígenas e a formação de educadores antirracistas” é gratuita e aberta ao público e contará com a presença de representantes do movimento indígena.
Militância pela educação indígena
Natural de Santa Catarina, Rosani de Fátima Fernandes, 48 anos, terá na UFRGS sua primeira experiência como professora efetiva em uma instituição de Educação Superior. A pedagoga nasceu na aldeia Toldo Chimbangue, em Chapecó. Ela está de mudança para Porto Alegre e morava no Pará, onde concluiu o mestrado em Direito, com ênfase em Direitos Humanos, e o doutorado em Antropologia Social, ambos pela Universidade Federal do Pará (2017).
— Sou fruto das ações afirmativas. É uma alegria representar essa luta de mais de 300 povos indígenas no país. Espero ser inspiração para outras pessoas indígenas, sobretudo mulheres, para que possam trilhar esse caminho no Ensino Superior. É uma conquista coletiva, ocupar esse espaço de poder em uma universidade pública. Especialmente no Sul do Brasil, onde o racismo contra os povos indígenas ainda está tão presente — afirma Rosani, que ficou em primeiro lugar no processo seletivo.
Ela conta que, há mais de 30 anos, milita pela educação escolar indígena de qualidade, atuando na formação de professores, produção de materiais didáticos e elaboração de currículo. A pesquisadora chegou a dar aulas em escolas indígenas da rede estadual de ensino do Pará. Desde o ano passado, ela integra a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação (MEC), auxiliando também na construção de políticas públicas.
— Não romantizo isso, eu sei que vou enfrentar disputas de poder. A universidade é um espaço disputado, e conflitos são parte do processo. Mas precisamos ocupar os espaços para poder fazer o enfrentamento. Minha esperança é que a UFRGS se torne um lugar ainda mais plural, com múltiplas linguagens e etnicidades — destaca a professora.
Primeiro doutor e professor indígena da UFRGS
Em 2020, a Faced diplomou Bruno Ferreira Kaingang, 57 anos, o primeiro doutor indígena da UFRGS. Em sua tese, ele argumentou que a escola kaingang deve ser construída a partir das práticas, da cultura e das concepções de mundo de seu povo, superando a imposição de modelos e políticas educacionais formuladas por não indígenas. Ele defendeu que a Educação Básica é uma ferramenta importante para a construção da autonomia dos povos indígenas.
— Nossa presença na universidade representa um avanço muito grande no que se refere ao reconhecimento dos saberes dos povos indígenas, para termos uma sociedade mais equilibrada. Por muito tempo esse conhecimento foi negligenciado, e continua sendo, muitas vezes. Estar no Ensino Superior, mesmo que como estudante, contribui para colocar isso em pauta nas reflexões acadêmicas. Como docente, acredito que o povo kaingang ganha muito com isso — relata o professor, nascido na terra indígena Guarita, em Tenente Portela.
Além do doutorado, Ferreira concluiu o mestrado em Educação na UFRGS, bem como graduação em História pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do RS (Unijuí). Atualmente, ele leciona no Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, na terra indígena Inhacorá, em São Valério do Sul, onde mora atualmente. O professor está se mudando para a Capital para dar aulas na Faced. Será sua primeira experiência vivendo no meio urbano, longe de sua comunidade.
Depois de Ferreira, a UFRGS já formou outros doutores indígenas. No início do ano a Faced diplomou Isael da Silva Pinheiro, primeiro doutor guarani da universidade. Já em 2023, Susana Kaingang tornou-se a primeira doutora indígena da UFRGS, também pelo Programa de Pós-Graduação em Educação.
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Gaúcha ZH