Geral

A tristeza que permeia o filme “Coringa” com Joaquin Phoenix nos contagia por infindáveis dias. Há dor e solidão. Medo. Revolta. Violência. Incontáveis reflexões psicanalíticas. Também há manifestação política e sua correlação com o mundo distópico do qual somos ora algozes ora vítimas no mesmo tempo, espaço e lugar.

Já cogita-se provável continuação. Caso não atinja a perfeição do primeiro filme – que já adentrou no arquivo de obras primas – essa continuação poderá nos causar frustrações. “Joker” no original inglês é sufocante em todos os sentidos e permitiu que o jovem diretor Todd Phillips passasse a habitar mais próximo de vários Mestres da Sétima Arte. Francis Ford Coppola (1939-). Martín Scorsese (1942-). Ingmar Bergman (1918-2007). Wim Wenders (1945-). Akira Kurosawa (1910-1998). E porque não, mais recentemente a surpresa por detrás das câmeras, o veterano Clint Eastwood (1930-).

Entretanto não me estenderei além, cada um de nós tem suas preferências específicas. Não é meu objetivo “criar escalas de comparações” de roteiros, atuações artísticas e menos ainda, direção por detrás das câmeras. Deveria ter escrito o artigo na semana que assisti a estreia de Coringa. Rabisquei como sempre faço palavras chaves e frases soltas, guardei-as dentro de uma pasta arquivo. Algo me dizia que deveria assistir o filme outra vez. Semana passada eu e um colega de aula repetimos a dose no cinema.

Todd Phillips não quis apenas entreter o grande público. Queria fazer o grande público pensar. E conseguiu com nota máxima. Tomando certas liberdades sem fugir longe demais dos quadrinhos, deu vida a uma história arrebatadora nas bilheterias mas que não se esvaiu em meio a críticas e nem foi carimbada como obra mediana sem conteúdo. Ou outro caça níquel de violência gratuíta, armadilha letal entre os apaixonados por revistas em quadrinhos. Coringa é um filme que veio para ficar e ponto final.

Já escrevi muito sobre Batman, que aliás é meu super herói preferido desde os 5 anos de idade. Continuarei a fazê-lo com a veneração que tenho pelo cavaleiro das trevas e sua obsessão por justiça, jamais vingança. Suas angústias existenciais e a tendência praticamente suicida de combater seus inimigos, se jogando até o limite do imponderável me encantam desde sempre. Não Bruce Wayne, arrogante insuportável. Batman, sim!

Entretanto é preciso desvincular Coringa, um dos grandes inimigos do Cavaleiro Negro nessa análise, porque é sobre Coringa na sua carreira solo e não sobre Batman, minha fascinação que ora escrevo. Coringa é um espelho. Verso e Reverso da alma quando ela adoece. Esse Coringa pelo olhar de Todd Phillips e a atuação espetacular de Joaquin Phoenix, não os outros. Não façamos comparações em hipótese nenhuma.

Um espelho que reflete nossos demônios interiores que sugam nossas energias. Um espelho que nos desmascara as escolhas equivocadas. Nos redesenha os pavores de sermos apenas um número estatístico numa sociedade que nos devora cada pedaço do corpo, da mente e do espírito se nos deixarmos abater. Coringa nos gospe na cara aquela necessidade de sermos melhores em tudo. E nossas falhas como seres humanos com outros seres humanos. O desamor!

Podemos ser extremamente cruéis uns com os outros na frieza de nossos relacionamentos e quando menosprezamos as dores e as carências que não nos pertencem. Nos escondendo atrás de máscaras, fingindo ser o que não somos, quando no íntimo nossas almas permanecem atormentadas e também estamos carentes de afetos.

Não preciso e não há necessidade de me ater a descrição pormenorizada de cada cena, do colorido visual, da interpretação magistral de Joaquin Rafael Phoenix, cuja história na vida real, uma coleção de aventuras e desventuras sem comparação, poderá no futuro render outro filme autobiográfico e brilhante. Da trilha sonora impecável aos lugares de locação de cada uma das cenas, absolutamente tudo se encaixa na perfeição dos grandes Mestres da Sétima Arte. Ou seja o jovem Todd Phillips pode saborear o sucesso conquistado. Se não “errar a trilha do trem” nos próximos trabalhos, a partir de agora já passa a ser considerado “um dos grandes do pedaço.” E merece com louvor.

Há “tristeza” no filme Coringa que dilacera pequenas porções de nosso cérebro. Esqueça a questão da relação ambígua entre mãe e filho. Esqueça a questão do milionário Thomas Wayne. Esqueça a questão das máscaras de palhaço que acabam por ser usadas nas manifestações. Esqueça a mente criminosa que explode a cada sequência. Esqueça o sadismo que se revela ao cometer as atrocidades. Esqueça porque não é sobre atenuar e menos ainda justificar o resultado final da aberração monstruosa chamado Joker e o caos ao seu redor. O caos que se forma antes, durante e depois de sua transformação.

Os degraus da existência invisível. A escada interminável que liga partes da cidade fictícia aos capítulos de sua vida. A dança na escada. A dança da libertação. A troca de figurino. As cores da sua existência infame. As pintura de guerra ostensiva na sua face. A morte acenando como solução alentadora para uma vida medíocre. A vida se esvaindo. A vida deixando de ser vida para ser tormento e maldição.

Coringa nos faz pensar o quanto gastamos nosso tempo em empregos inúteis, convivendo com parentes inúteis, com amigos inúteis, dando nosso melhor para amores inúteis. E que ao contrário do personagem que sofre de sérios transtornos psiquiátricos catalogados pela medicina moderna, nós os ditos “seres humanos normais” deixamos que nossas asas da criatividade sejam cortadas por outros “seres humanos normais,” num jogo hipócrita de regras estabelecido por uma sociedade que é desajustada. Vem do topo “o horror” que nos esmaga. Vem do topo “a ilusão do véu de Maya!”

Os degraus da existência invisível são os mesmos degraus concretos que podem te levar ao paraíso ou ao inferno. Que te fazem rir ou chorar. Amar ou odiar. Crescer ou te encolher. Os degraus de uma escada que não pode ser percorrida por outra pessoa. Enquanto amadurecemos e nos tornamos maiores, melhores e mais fortes. Ou piores e mais desprezíveis. E se nos fecharmos num vazio existencial, num círculo vicioso de derrotas e fracassos, lamúrias e lamentações, seremos imediatamente dominados por outros seres, talvez até que “nem humanos sejam” e tendo “escravizado esse planeta” há séculos, nos impõe regras e regras, cortando nossas asas e nos impedindo assim de voar e ensinar aos outros a voarem também. A Matrix dominadora sugando-nos a luz sem dó!

Mas essa tristeza que permeia o filme Coringa, também te abraça e te envolve. Te questiona. Ao contrário do personagem magistralmente interpretado pelo ator Joaquin Rafael Phoenix, teu destino, o próximo passo, a próxima atitude está intimamente atrelado a tua decisão de mudança. Ser livre. Mas ser livre requer lutar e muito por essa liberdade!

Contudo é imprescindível aceitar o fato de que tu não és um escolhido por esse/essa ou aquele/aquela Deus/Deusa dessa ou daquela religião. Nunca. Nunca. Nunca. E nem foste abandonado por ele/ela à própria sorte ou azar. Que um mundo novo pode e deve nascer em meio ao caos. Mas antes precisa nascer um/a novo/a homem/mulher refeito/a de suas derrotas, suas mazelas, sobrevivente de suas próprias comiserações.

Que essas misérias morais, herdadas de nossos antepassados entranhadas no nosso código genético ou adquiridas, resultado de falhas de nosso caráter ou erros grosseiros que cometemos no passado não são desculpas para não ir além. Existe futuro se tu construir esse futuro por tuas próprias mãos, mesmo que isso consuma toda tua encarnação. E que nessa encarnação tua consciência reveles quem tu realmente és!

Eis que a morte é meramente uma passagem. E tu voltarás para continuar a a escrever tua história com tuas próprias mãos, ações e pensamentos. Não podes viver uma vida sem paixões! Jamais! Uma vida sem paixões é uma vida sem objetivos.

Além dos degraus da existência invisível. Além das nossas dores, dos nossos equívocos ou até de nossos amores mal fadados e fracassados. Não importa o que está escrito no nosso código genético repito, se a vontade de ser melhor for maior até que a força que nos criou. Eis que a transformação parte de ti para o mundo e não ao contrário.

E se dentro de ti habita um ser infeliz tal qual o Coringa, há de se combater essa infelicidade reconhecendo que somos sua causa e consequência ao mesmo tempo, abrindo apenas uma exceção, uma única exceção, se há transtornos mentais diagnosticados e sendo reais nos impeçam de avançar. Então será a Medicina mais a Filosofia trabalhando irmanadas, ciência e fé que poderão resgatar a saúde mental e a dignidade do homem.

Ninguém fará por ti o que tu tens que fazer por ti. As respostas habitam em ti. Assim como as perguntas. As dúvidas. As opções. As decisões. O poder de ação. A força. Ou a Fé. A energia atômica. Designe-a como quiser desde que tu a use em sua potência máxima. Mudar o que te destrói por dentro e de como, ignorando as dores do outro, essa brutal falta de compaixão, de afeto, esse desamor pode nos destruir como civilização.

Nos destruir antes de que finalmente consigamos passar ao próximo estágio, o estágio de evolução da espécie, deixando de ser um “rascunho inacabado” de seres humanos incompletos e imperfeitos, acreditando que somos a única espécie de vida a habitar esse universo, entre milhões e milhões de outros universos e que a morte é o fim!

Régis Mubarak *

Jornalista. Mendoza – Argentina & Rio Grande do Sul – Brasil.