Internacional
Foto: Polícia Civil / Divulgação

Empresários gaúchos inventaram um esquema azeitado para driblar o pagamento de impostos e lucrar bilhõesContrabandeiam soja e milho desde a Argentina (muitas vezes, plantados por brasileiros naquele país), misturam com cereais produzidos legalmente no Brasil, pagam aos contrabandistas por meio de criptomoedas, criam empresas fictícias para dar ares de legalidade para a operação e multiplicam lucros em ações internacionais de comércio exterior. É o que apurou o Grupo de Investigação da RBS (GDI) ao longo do último ano, com flagrantes próprios e ao acompanhar ações da Brigada Militar, da Polícia Civil e da Polícia Federal.

Em 2023, o GDI mostrou como milhares de toneladas de soja contrabandeadas da Argentina chegam ao noroeste do Rio Grande do Sul. Os grãos são descarregados em caminhões, em balsas, que atravessam o Rio Uruguai conduzidas por barcos a motor.

A Polícia Civil, a Brigada Militar e a Polícia Federal surpreenderam diversos contrabandistas, com uso de drones e patrulhas ribeirinhas. Só no ano passado apreenderam 171 toneladas de grãos contrabandeadas. Mas, embora tenha diminuído de intensidade, essa modalidade de crime continua. Nos últimos dois meses, agosto e setembro de 2024, foram gravadas imagens, entre Tiradentes do Sul e Esperança do Sul, de criminosos em ação. É possível ver barcos carregados de soja descarregando o produto nas margens do rio. Os grãos são depois erguidos para caminhões, que saem das margens do rio direto para depósitos que servem para receptar o material contrabandeado.

As cenas são a parte visível de um esquema que permite a empresários lucrarem até mais do que o dobro na compra de soja de forma ilegal. O esquema envolve empresas que emitem notas fiscais fraudulentas, corretoras de cereais que disfarçam a origem criminosa dos grãos e operações internacionais envolvendo criptoativos. Dezenas de pessoas foram presas em flagrante em ações da Brigada Militar e da Polícia Civil no ano passado. A PF capturou 16 empresários, sobretudo produtores rurais, que seriam responsáveis por movimentar R$ 3,5 bilhões em contrabando de soja, milho e agrotóxicos na região noroeste do Estado.

Modus operandi inclui uso
de laranjas e criptomoedas

As investigações conduzidas pelas polícias Federal e Civil, assim como flagrantes feitos pela BM, mostram que o contrabando de soja envolve uma estrutura compartimentada e diversificada. Atuam de forma coordenada com os detentores dos portos clandestinos, os beneficiários e revendedores de grãos contrabandeados e os operadores financeiros. As etapas:

  • Contrabando em barcos: a soja é enviada da Argentina para o Brasil, via barcaças no Rio Uruguai. É uma atividade lucrativa porque a cotação oficial da saca de soja na Argentina (60 kg) está em cerca de R$ 100. Basta atravessar para o Brasil, e o produtor consegue R$ 138. Mas o lucro pode ser até o dobro, já que os brasileiros podem pagar menos do que a cotação oficial aos argentinos. Isso porque, na Argentina, o produto também costuma ser vendido de forma ilegal, com sonegação.
  • Receptação na beira do rio: ocorre em propriedades ribeirinhas no Brasil, em municípios como Tiradentes do Sul, Esperança do Sul e Crissiumal. Mas pelo menos 15 municípios têm tentáculos da organização. Os grãos são descarregados por barcas em caminhões velhos (para evitar apreensão de veículos novos), que sobem as barrancas e acondicionam o produto em galpões (moegas ou tulhas). São depósitos provisórios de metal com escorregador em forma de funil, para facilitar a colocação dos grãos nos veículos. A ação conta com uso de grupos de WhatsApp e rádios walkie-talkies, além de vigias próximos ao rio.
  • Venda ou aluguel de portos: produtores rurais das barrancas do rio, com menor poder aquisitivo, arrendam os atracadouros para grandes cerealistas. São os chamados “laranjas conscientes”, que emprestam suas propriedades para lavar dinheiro. No ano passado, a dona de um porto clandestino em Tiradentes do Sul recebeu via fluvial 25 toneladas de soja. A carga foi posteriormente repassada para o nome de um produtor rural, dono de uma empresa de comércio de cereais, e transportada para Palmeira das Missões, onde ele a misturou com soja colhida legalmente.
Polícia Civil / Divulgação
Mais imagens de barco transportando soja contrabandeada até caminhão, na margem brasileira do Rio Uruguai. Polícia Civil / Divulgação
  • Alta capacidade logística: por meio de frotas de barcos e caminhões, somente num dia de 2022, conforme contabilidade apreendida, contrabandistas movimentaram 262 toneladas de grãos da Argentina ao Brasil. Isso ocorreu na região noroeste do Rio Grande do Sul.
  • Notas fiscais irregulares: flagrantes comprovam que os transportadores de soja contrabandeada usam notas fiscais parcialmente preenchidas, sem quantia de grãos e sem a placa do veículo que as transporta. É uma tentativa vulgar de legalizar a carga.
  • Uso de blocos do produtor rural comprados: o documento é usado para tentar legitimar a aquisição de soja contrabandeada, disfarçando o cereal como se fosse plantado no Rio Grande do Sul.
  • Compra de dólares em nome de empresas laranjas: as investigações apontam uso de notas de posto de combustíveis e de cerealistas para comprar dólares em ações de câmbio ilegais. Depois, o dinheiro é usado para pagar os argentinos fornecedores de soja contrabandeada.
  • Propriedades em dois países: alguns dos indiciados possuem propriedade rural em El Soberbio (Argentina) e em Tiradentes do Sul (município brasileiro, situado em frente a El Soberbio). Com portos clandestinos nos dois países.
Polícia Civil
Caminhão flagrado com carregamento de soja contrabandeada. Polícia Civil
  • Empresas de fachada: os contrabandistas usam notas fiscais fraudulentas para dar aparência legal às cargas de soja. É o caso de uma firma de móveis sob medida na Grande Porto Alegre, cujo endereço consta nas notas como sendo voltada ao comércio atacadista de cereais e legumes.
  • Corretoras de grãos: a soja contrabandeada é misturada à produzida legalmente e vendida por meio de corretoras de cereais legalmente estabelecidas. Depois, os valores são transformados em criptomoedas, repassados a credores via empresas de comércio exterior.
  • Aquisição de automóveis, caminhões e aviões: os veículos são usados como investimento e também como garantias de empréstimos para financiar a operação.
  • Empresas “noteiras”: o uso de blocos do produtor rural tem sido substituído por uma modalidade mais sofisticada, a criação fraudulenta de empresas. Elas são chamadas de “noteiras”, isto é, constituídas exclusivamente para emissão de notas com informações falsas. Elas não trabalham com carga real, mas usam notas para justificar artificialmente o ingresso de bens e a prestação de serviços no país. Essas “noteiras” usam documentos fiscais que geram créditos de ICMS indevidos aos destinatários (quando não há a efetiva circulação das mercadorias por eles acobertadas) ou escondem o trânsito de mercadorias de empresas existentes (omitindo a origem ou o destino destas).
Polícia Civil / Divulgação
Tulhas, depósitos de soja na beira do Rio Uruguai, são usados pelos contrabandistas para transbordos. Polícia Civil / Divulgação
  • Uso de criptomoedas: os receptadores transformam o dinheiro em criptoativo USTD, moeda virtual atrelada ao dólar, viabilizando, desta feita, o envio de divisas ao Exterior. Segundo apurado, os valores são destinados ao pagamento de grãos contrabandeados da Argentina. Lá são recebidos por doleiros, o que oculta o efetivo proprietário do dinheiro. Duas das empresas investigadas adquiriram criptoativos na ordem de R$ 1,2 bilhão.

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