Justiça
Foto: Ronaldo Bernardi / Agencia RBS

André da Silva Jardim, 37 anos, recebeu uma descarga elétrica após encostar o braço esquerdo em uma rede elétrica que julgava estar desligada em Capão da Canoa. Silvano Dantas Aranda, 30, reparava um cabo rompido quando a energia foi restabelecida sem aviso, em Bagé. Thiago Nunes de Bittencourt, 38, sofreu uma parada cardiorrespiratória ao se assustar com o surgimento de um arco elétrico no poste em que trabalhava, em Palmares do Sul.

André, Silvano e Thiago eram eletricistas e morreram a serviço da CEEE Equatorial no decorrer de 2023. Segundo investigação do Ministério do Trabalho, “os três casos seguem exato mesmo perfil, envolvendo erros operacionais grosseiros praticados pelas equipes acidentadas em razão da falta de domínio das funções por motivo de desqualificação das equipes”.

Amparada em ampla documentação, cruzamento de dados de órgãos públicos e empresas privadas, além de interrogatórios e laudos de necropsia, a apuração da Superintendência Regional do Trabalho foi enviada para 11 órgãos de controle e fiscalização, como Polícia Civil, Polícia Federal e Ministério Público. O objetivo é analisar eventuais infrações criminais, trabalhistas e previdenciárias, sem prejuízo a demais ilegalidades.

Os relatórios apontam indícios de estelionato, falsidade ideológica e frustração de direito trabalhista mediante fraude por parte de gestores e fiscais das empresas, que estariam tolerando ilícitos em detrimento do interesse público e do interesse corporativo da própria CEEE.

Desde que assumiu a operação da CEEE, em julho de 2021, o grupo Equatorial terceirizou os atendimentos às ocorrências de rua. Nesse período, praticamente dobrou o número de reclamações contra a empresa na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Entre as 20.811 queixas formalizadas até 1º de janeiro de 2024, 8.982 (43%) são referentes à qualidade do fornecimento e 3.989 (19%) por serviços técnicos deficientes.

— Recebemos muitas reclamações sobre a baixa capacitação dos funcionários — afirma o gerente de energia elétrica da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs), Alexandre Jung.

Ao apurar as causas das mortes ocorridas em 2023, o Ministério do Trabalho deparou com uma série de padrões repetitivos, como uso de mão de obra submetida a treinamento inadequado, “falta de domínio sobre rotinas básicas de trabalho e tolerância por parte da CEEE em relação a violações graves praticadas por suas prestadoras de serviço”.

André, Silvano e Thiago trabalhavam para a Setup, empresa com sede em Santa Catarina e considerada terceirizada-âncora da CEEE Equatorial. Conforme o coordenador de Análises de Acidente de Trabalho do Ministério, Otávio Rodrigues, a Setup é recordista de mortes sequenciais no Estado em 2023.

— Nunca na história da CEEE houve tantas mortes com o mesmo padrão na mesma terceirizada. Isso mostra que há falhas reais na capacitação das equipes — comenta Rodrigues.

No relatório de análise do acidente que matou Thiago, o servidor conclui que as falhas são decorrentes de um “sofisticado esquema de fraudes” que começa com a admissão informal de trabalhadores sem formação técnica e chega à emissão de certificados forjados com três vezes mais horas-aula do que as efetivamente ministradas. Quando vão a campo, alguns desses técnicos nem sequer estão credenciados a intervir nas redes da CEEE Equatorial, mas contariam com a leniência da companhia. “O grau de desordem era tamanho que trabalhadores não autorizados mantinham contato direto com a central de operações da CEEE e figuravam formalmente em ordens de serviço”, aponta o Ministério do Trabalho.

A documentação funcional de André, por exemplo, aponta que ele estava sendo treinado pela Setup no Rio de Janeiro em agosto de 2022 quando na verdade neste período ele trabalhava em outra empresa, em São Leopoldo. Quando a equipe dele foi enviada pela Setup a Capão da Canoa para fazer o reparo fatal, em 31 de janeiro do ano passado, o chefe do grupo, Paulo Henrique Vieira, fez sucessivos contatos com a central de operações da CEEE Equatorial mesmo sem dispor de habilitação formal para as comunicações.

O operador da concessionária não conferiu a identidade, tampouco o cadastro de Paulo, mas ainda assim vetou o trabalho, pois tal intervenção na rede não havia sido programada. A despeito da proibição, a equipe seguiu com o conserto que culminou no óbito de André, contratado dois meses antes.

No caso do acidente de Bagé, um dos sobreviventes, Paulo Rael Barboza, declarou ao ministério não conhecer o engenheiro da Setup que consta em documentação da empresa ter sido seu instrutor.

Em Palmares do Sul dois membros da equipe, Everton da Rosa Brito e Vinícius Formoso de Moura recebiam seguro-desemprego no período em que supostamente estavam sendo treinados pela Setup e quando já deveriam estar formalmente vinculados à terceirizada. De acordo com o ministério, as admissões informais com registro tardio na carteira de trabalho, conjugado com o treinamento reduzido, estariam gerando à Setup economia ilícita de até R$ 10 mil por trabalhador.

Após a morte de André, uma comissão interna da CEEE Equatorial determinou abertura de auditoria para verificar a qualidade dos treinamentos da Setup, mas o procedimento foi abandonado. Quando Thiago morreu, oito meses depois, a CEEE nem sequer emitiu comunicação de acidente de trabalho. Notificada pelo Ministério do Trabalho, a concessionária alegou se tratar de morte natural e não forneceu nenhum documento sobre o caso. 

Para o ministério, tal comportamento “revela aparente intenção de acobertar irregularidades graves praticadas pela Setup, sobretudo porque se tratava da terceira morte em menos de um ano”.

Os acidentes

Capão da Canoa – 31/01/2023

O primeiro acidente fatal da CEEE Equatorial em 2023 envolveu uma equipe que deveria adaptar um poste, mas acabou deslocada pela Setup para terminar tarefa deixada inconclusa no dia anterior. Não havia ordem de serviço formal, tampouco comunicado de que a rede estava energizada.

O chefe da equipe, Paulo Vieira, solicitou autorização para conectar um cabo, mas o pedido foi negado pois a concessionária não havia sido informada que o reparo não fora concluído na véspera. Mesmo sem autorização, eles começaram o trabalho sem verificar se havia tensão. Contratado havia dois meses, André Jardim estava no cesto com um colega e esbarrou o braço esquerdo numa fase que acreditava estar desenergizada. Ele morreu no hospital, por eletroplessão, 31 dias após o acidente.

Bagé – 16/04/2023

No segundo acidente, a Setup enviou uma dupla de eletricistas para reparar um cabo elétrico rompido na zona rural de Bagé. Após identificar o ponto de ruptura, a equipe não checou as condições de segurança nem adotou procedimentos para garantir que o trecho permanecesse sem energia. O circuito sob intervenção não foi seccionado e também não recebeu aterramento provisório.

Quando Silvano estava executando o conserto, o cabo foi reenergizado. O Ministério do Trabalho não conseguiu identificar se a tensão foi religada por atuação de gerador de energia solar conectado ao trecho ou por fechamento indevido de alguma chave seccionadora que não estava devidamente sinalizada por terceiro. Silvano recebeu uma descarga elétrica e acabou morrendo a caminho do hospital.

Palmares do Sul – 08/09/2023

No terceiro acidente, uma equipe da Setup foi enviada a Palmares do Sul para realizar manutenção em rede de média tensão. Não há detalhes da tarefa porque, segundo o Ministério do Trabalho, a CEEE Equatorial e a Setup “sonegaram a ordem de serviço” com a designação do trabalho a ser executado. A morte ocorreu durante ato prosaico de abertura de chave seccionadora.

Quando a chave foi aberta com vara de manobra, formou-se um arco elétrico, fenômeno corriqueiro em ações deste tipo. Dois técnicos assustaram-se e saíram correndo. Na fuga, Everton Brito caiu em uma vala e Thiago Bittencourt, que tinha hipertrofia cardíaca, teve convulsões e morreu no local. Segundo o ministério, morreu de susto por “colapso cardiorrespiratório após crise aguda de estresse a pânico”.

As falhas no treinamento

Segundo o Ministério do Trabalho, as irregularidades no treinamento dos eletricistas obedeciam um padrão:

  • Os cursos eram limitados a cem horas, ministrados em duas semanas de aulas presenciais (80 horas) para formação de eletricista e aulas online (20 horas) sobre normas de segurança. 
  • Na documentação enviada à CEEE Equatorial, a empresa informava carga horária até três vezes superior à efetivamente ministrada aos trabalhadores.
  • A data destes supostos treinamentos, registrada nos certificados, é anterior à contratação formal dos trabalhadores pela Setup, o que fere a legislação trabalhista.
  • Há casos de técnicos que trabalhavam em outra empresa ou recebiam seguro-desemprego no período do suposto treinamento e que o instrutor estava ministrando aulas em duas cidades no mesmo dia.

A legislação

Para efetuar algumas tarefas executadas pelas equipes acidentadas, exige-se 80 horas de curso apenas sobre segurança em instalações elétricas, além da formação como eletricista. O curso ministrado pela CEEE Equatorial em parceria com o Senai prevê 360 horas de curso de eletricista, mais o treinamento em segurança.

CEEE diz que segurança é valor inegociável

Procurada para comentar as mortes de trabalhadores terceirizados e as queixas por falhas no atendimento, a CEEE Equatorial não respondeu os 15 questionamentos enviados por GZH. A empresa divulgou nota na qual diz manter rigoroso processo de controle sobre os parceiros e que a segurança é um valor inegociável. 

A Setup, principal terceirizada da CEEE e onde trabalhavam os três eletricistas mortos em 2023, também não respondeu às perguntas de GZH. Por nota, a empresa disse lamentar os acidentes e ter adotado medidas preventivas e reparatórias. A Setup disse ainda que “prestará os devidos esclarecimentos em momento oportuno, pelos meios cabíveis”.

A nota enviada pela CEEE:

A respeito dos questionamentos da reportagem do jornal Zero Hora, a CEEE Equatorial informa que mantém rigorosos processos de controle sobre a atuação de parceiros e fornecedores no que se refere ao cumprimento das legislações trabalhistas aplicáveis ao setor elétrico.

A concessionária acompanha as investigações do Ministério do Trabalho e, comprovadas irregularidades, tomará as medidas cabíveis e sanções previstas aos fornecedores implicados. A CEEE Equatorial destaca, ainda, que a segurança e o bem-estar de sua força de trabalho, seja ela própria ou terceirizada, é um valor inegociável do Grupo Equatorial.

A nota da Setup:

O Grupo Setup, em 2024, completa 18 anos de história. Em todo esse período, o Grupo Setup sempre buscou alcançar seus objetivos utilizando as melhores práticas de gestão de pessoas, de forma que a prioridade do Grupo Setup sempre foi com a segurança de seus colaboradores. Todos os profissionais que atuam no Grupo possuem os cursos necessários para o desempenho de suas atividades e seguem padrões rigorosos de segurança. Além disso, o Grupo Setup acredita na importância da conscientização das medidas para a prevenção de acidentes de trabalho e desenvolve diversas campanhas, que ocorrem semanalmente, em todos os nossos postos de trabalho, por meio do setor de Segurança do Trabalho da empresa, que é composto por profissionais capacitados e comprometidos. O Grupo Setup investe fortemente em tecnologia em todos os segmentos nos quais atua e acredita na importância de um trabalho integrado, dinâmico e eficiente, alinhado, também, com a valorização profissional. Por fim, o Grupo Setup lamenta os acidentes ocorridos em sua operação e se solidariza com os familiares e amigos, ao tempo em que, reitera que todas as medidas preventivas e reparatórias cabíveis foram tomadas à época. Com relação às alegações dos órgãos de fiscalização do Rio Grande do Sul, o Grupo Setup informa que as apurações necessárias foram realizadas e a empresa prestará os devidos esclarecimentos em momento oportuno, pelos meios cabíveis.

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