Você acha que estupro se resume apenas àquela cena em que um desconhecido captura uma mulher na rua, a leva para um beco escuro e tenta transar à força? Então, pare e leia esta reportagem com atenção. Para além desse tipo caso, há diferentes situações que podem ser enquadradas como estupro segundo o Código Penal brasileiro.
O artigo 213 caracteriza o estupro como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. No Brasil, é registrado um estupro a cada oito minutos, de acordo com os dados atualizados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Essa prática criminosa pode levar de seis a 10 anos de prisão, e mais: também estão previstas no código penal condutas como o estupro coletivo e a divulgação de cena de estupro.
No caso Robinho, jogador condenado em primeira instância na Itália por violência sexual e que estampou as manchetes nos últimos dias, o fato de colocar o pênis na boca de uma mulher sem capacidade de consentir o sexo oral é um ato enquadrado como estupro por aqui. Sem entrar no mérito do processo envolvendo o atleta, Donna procurou duas especialistas para conversar sobre as diferentes manifestações dessa terrível violência sexual. Veja:
Estupro não precisa de penetração vaginal ou anal
Está em uma festa e um homem tentou colocar os dedos na sua vagina sem autorização? Isso é estupro. Você bebeu demais e algum amigo ou parente aproveitou para passar a mão em suas partes íntimas? Também é estupro. O artigo 213 especifica que não é preciso ocorrer a penetração, a “conjunção carnal”, para que o ato se caracterize como crime sexual.
— Por muito tempo, o estupro foi considerado violação com penetração. Hoje, se entende que é muito mais que isso. Um tio que passa a mão na vagina de uma menina comete estupro de vulnerável. Forçar o sexo oral é estupro também — explica Gabriela Souza, advogada que está à frente de um escritório especializado em direitos das mulheres.
Presidente da comissão da Mulher Advogada, da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul (OAB-RS), Claudia Sobreiro de Oliveira avalia que ainda há muito desconhecimento sobre o tema, tanto da parte de homens quanto de mulheres:
— Estupro envolve mais de uma forma de violência, as pessoas precisam entender a sua responsabilidade. As mulheres, muitas vezes, nem sabem que passaram por isso. É preciso uma conscientização coletiva, e casos com repercussão na mídia ajudam a dar visibilidade ao tema, assim como a pandemia levantou muitas discussões sobre violência doméstica.
Bebeu demais e alguém forçou o sexo? Fique atenta
Uma relação sem consentimento é caracterizada como estupro. Se a mulher bebeu demais e não tinha condições de expressar que queria estar ali naquele momento fazendo o que quer que seja, o caso se torna uma violência sexual. Transar com alguém alcoolizado, dependendo das circunstâncias, pode ser enquadrado como crime. Uma mulher bêbada ou que usou drogas, por exemplo, se encontra em um estado vulnerável e não tem capacidade de julgamento, pontua a advogada Gabriela:
— A palavra-chave é consentimento. Há estados em que a pessoa não tem condições de defesa, de dizer não. O consentimento tem que ser expresso. Se a vítima não disse “não”, não quer dizer que ela disse “sim”. Esse “sim” precisa ser dito, consciente. Vivemos em um mundo em que a ausência do não é interpretada como um sim.
Não é não. E assistir também é crime
Depois do não, é tudo crime. A ausência do “sim” também é um “não”. E mais: se você está em um ambiente em que um grupo de pessoas comete esse tipo de violência sexual sem consentimento pode ser enquadrado como coautor do crime, explica a advogada Claudia, da OAB-RS:
— Se a pessoa não tem condições de manifestar sua vontade, já se presume violência. Nesses casos, o estupro coletivo funciona como um homicídio. Um dá a facada, mas o outro segurou a vítima, ou comprou a faca. No fim, não interessa o tipo de participação, contribuiu para o resultado. Pode ser considerado coautor de estupro.
Vulnerabilidade profissional
Casos em que um profissional utiliza do seu cargo para induzir a vítima a algum ato libidinoso também pode ser encarado como estupro, dependendo do contexto. Um fotógrafo dizer para uma mulher que “faz parte tocar nas partes íntimas da modelo para o trabalho ter melhor resultado” é um exemplo desse tipo de crime. Ou um médico que instrui a vítima a sentar nua em seu colo para “melhor avaliação”, ou que toca em partes que não fazem sentido para o diagnóstico. Segundo a advogada Gabriela, essas práticas podem ser enquadradas no quesito “grave ameaça” do artigo 213 do código penal, além de “violação sexual mediante fraude”, do artigo 215.
— O estupro fala muito mais sobre um exercício de poder do que necessariamente de força. É uma violação para mostrar o seu poder. E é uma violência majoritariamente cometida contra mulheres — alerta Gabriela.
Estupro dentro do casamento
Uma mulher não é obrigada a transar com o marido quando não tem vontade. O problema é que o estupro marital não é raro: muitos homens têm relações sexuais com as esposas na base da ameaça, chantagem e/ou da violência física.
— Dizer que vai se separar e não dar dinheiro, por exemplo, são ameaças que ocorrem dentro de um casamento em troca de sexo. A mulher se sente em um beco sem saída. Nem sempre esse estupro ocorre com força física, mas, muitas vezes, a agressão está presente – afirma Gabriela. — O estuprador não é só o homem do beco escuro que te leva para um terreno baldio. Eles costumam ser conhecidos das vítimas, amigos, namorado, marido, tios, padrastos, chefes, personalidades. Não têm cara.
A advogada Claudia reforça o alerta quando o assunto são os crimes sexuais dentro de casa ou em locais “seguros”:
— Há diferentes tipos de violência doméstica e, dependendo do caso, entra como estupro. Muitas vezes, infelizmente, o estupro acontece dentro do lar, por alguém família, entre conhecidos. É preciso estarmos atentas, porque costumamos confiar mais em quem está próximo.
Um estupro pode começar em uma relação consensual
Conheceu um cara em uma festa, o clima rolou, estava tudo indo bem. Na hora de transar, ela se sentiu desconfortável e resolveu interromper a relação e ir embora. Se a negativa não for suficiente para a mulher estar livre para sair do ambiente e for forçada a seguir na relação sexual, isso também se caracteriza como estupro, mesmo tendo começado de forma consensual. O “não” é o ponto final, não interessa quando, onde ou como ele ocorrer.
— Você tem esse direito de não querer mais. Se for violada, é estupro — explica Gabriela.
Sexo anal após negativa
O “não” também inclui o sexo anal em uma relação consensual. Se a mulher quer apenas penetração vaginal, explica que não está disposta a fazer sexo anal e, mesmo assim, o homem insiste, pega a vítima a força e realiza a penetração, isso é considerado estupro.
— A pessoa que passa por isso precisa fazer uma ocorrência e um exame de corpo de delito. Nossa dificuldade são as provas, é o grande desafio desses casos. E há uma culpabilização da vítima recorrente. Em pleno 2020, ainda vemos isso com frequência — pondera Claudia.
Sou vítima. E agora?
O primeiro passo recomendado pela presidente da comissão da Mulher Advogada da OAB-RS é fazer um boletim de ocorrência – de preferência, acompanhada por um advogado. Assim, é possível dar início ao processo e buscar seus direitos na Justiça.
— Mesmo que já tenha passado algum tempo, tente registrar o “B.O”. É o ponto de partida. Dependendo, já vai ser encaminhada para o exame de corpo de delito. Algumas vítimas demoram para se dar conta que sofreram violência sexual, mas não devem deixar de denunciar — aconselha Claudia.
Donna/GZH