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Mesmo se houver dez julgamentos de Leandro Boldrini, jamais traremos de volta Bernardo. É uma ferida sem cauterização.

O júri pode ser anulado quantas vezes quiser por problemas técnicos, pode ser refeito, pode aumentar ou diminuir a pena, mas o que está em questão é o quanto uma criança sofreu à luz do sol. O quanto a omissão é criminosa. O quanto a covardia diante da vulnerabilidade da infância é ultrajante.

Bernardo, se estivesse vivo, estaria completando vinte anos, e talvez pudesse hoje se defender do pai e da madrasta, ironicamente médico e enfermeira. Talvez pudesse salvar sua eterna criança de 11 anos.

Mas, na época da tragédia, não teve chance nenhuma, misericórdia nenhuma. Porque vivia a fachada intocável em Três Passos (RS) de filho do doutor da cidade. Ninguém acreditava piamente nele. Sua morte foi a tardia confirmação de sua sinceridade. Como o doutor que cuida dos seus pacientes não seria capaz de cuidar do seu filho?

Por mais que pedisse ajuda, não seria levado a sério a ponto de ser encaminhado para a adoção de outro lar.

Desmerecemos o que as crianças sentem como se fossem fantasias da carência. Damos mais crédito a um adulto do que a uma criança.

Bernardo foi jogado emocionalmente fora, naquele mau exemplo de pai que nega o filho do relacionamento anterior para valorizar como único filho o do romance atual. O maior entrave é que sua mãe já se encontrava falecida, e não contava com um segundo e natural paradeiro para fugir dos requintes da rejeição.

Ele não tinha chave de casa, não tinha para onde ir, não tinha roupa adequada para o inverno, andava de chinelo no meio do frio, ficava sem almoço, comendo de favor nos vizinhos, “preso” na rua na maior parte do dia. Estava proibido de brincar com a irmã e falar com a madrastra.

Que vida miserável dada a ele! Ainda pior do que a sua morte ignominiosa foi o jeito que havia sido condenado a viver.

Era magrinho com seus trinta quilos, um menino mendigo às custas das sobras da família.

Só era lembrado no momento de tomar os remédios receitados pelo pai, prescritos caseiramente, sem nenhum acompanhamento terapêutico.

Pelos vídeos familiares, torna-se evidente a intenção de enlouquecê-lo.

Existem imagens de Bernardo chorando, correndo, fugindo, sendo seguido pela câmera no maior desespero e clamando para que parassem de filmar, tendo a sua tristeza questionada, o seu psicológico torturado, para que ele soltasse algum palavrão, fizesse um desatino ou demonstrasse um comportamento violento.

Por que um pai filmaria o filho em prantos se não para documentar o seu desequilíbrio? O comum é registrar o filho rindo, dançando, feliz, no colo, divertindo-se na piscina, jogando bola no gramado: cenas típicas e saudáveis da saudade do amor. Bernardo se via imensamente excluído e, simultaneamente, exposto ao escárnio, obrigado a se trancar no guarda-roupa para obter uma mínima privacidade para a sua dor.

Como todos os recursos e maus-tratos não surtiram efeito para estigmatizá-lo de desequilibrado, encomendou-se o homicídio secreto, para que ele não incomodasse mais ninguém com a sua doçura dentro da sua residência.

É o crime mais chocante do Rio Grande do Sul. Será sempre brutal e inexplicável pelos laços de sangue envolvidos, por mais que o tempo passe, por mais que o réu saia do banco e da sala por não aguentar enxergar o que ele mesmo fez.

Pela primeira vez, no júri, forçosamente, Leandro está dando atenção para Bernardo.

Minha coluna no jornal Zero Hora, GZH, última página, Porto Alegre (RS), 23/3//2023

Fabrício Carpinejar