Variedades

Morte em vida de Bernardo – Por Fabrício Carpinejar

Mesmo se houver dez julgamentos de Leandro Boldrini, jamais traremos de volta Bernardo. É uma ferida sem cauterização.

O júri pode ser anulado quantas vezes quiser por problemas técnicos, pode ser refeito, pode aumentar ou diminuir a pena, mas o que está em questão é o quanto uma criança sofreu à luz do sol. O quanto a omissão é criminosa. O quanto a covardia diante da vulnerabilidade da infância é ultrajante.

Bernardo, se estivesse vivo, estaria completando vinte anos, e talvez pudesse hoje se defender do pai e da madrasta, ironicamente médico e enfermeira. Talvez pudesse salvar sua eterna criança de 11 anos.

Mas, na época da tragédia, não teve chance nenhuma, misericórdia nenhuma. Porque vivia a fachada intocável em Três Passos (RS) de filho do doutor da cidade. Ninguém acreditava piamente nele. Sua morte foi a tardia confirmação de sua sinceridade. Como o doutor que cuida dos seus pacientes não seria capaz de cuidar do seu filho?

Por mais que pedisse ajuda, não seria levado a sério a ponto de ser encaminhado para a adoção de outro lar.

Desmerecemos o que as crianças sentem como se fossem fantasias da carência. Damos mais crédito a um adulto do que a uma criança.

Bernardo foi jogado emocionalmente fora, naquele mau exemplo de pai que nega o filho do relacionamento anterior para valorizar como único filho o do romance atual. O maior entrave é que sua mãe já se encontrava falecida, e não contava com um segundo e natural paradeiro para fugir dos requintes da rejeição.

Ele não tinha chave de casa, não tinha para onde ir, não tinha roupa adequada para o inverno, andava de chinelo no meio do frio, ficava sem almoço, comendo de favor nos vizinhos, “preso” na rua na maior parte do dia. Estava proibido de brincar com a irmã e falar com a madrastra.

Que vida miserável dada a ele! Ainda pior do que a sua morte ignominiosa foi o jeito que havia sido condenado a viver.

Era magrinho com seus trinta quilos, um menino mendigo às custas das sobras da família.

Só era lembrado no momento de tomar os remédios receitados pelo pai, prescritos caseiramente, sem nenhum acompanhamento terapêutico.

Pelos vídeos familiares, torna-se evidente a intenção de enlouquecê-lo.

Existem imagens de Bernardo chorando, correndo, fugindo, sendo seguido pela câmera no maior desespero e clamando para que parassem de filmar, tendo a sua tristeza questionada, o seu psicológico torturado, para que ele soltasse algum palavrão, fizesse um desatino ou demonstrasse um comportamento violento.

Por que um pai filmaria o filho em prantos se não para documentar o seu desequilíbrio? O comum é registrar o filho rindo, dançando, feliz, no colo, divertindo-se na piscina, jogando bola no gramado: cenas típicas e saudáveis da saudade do amor. Bernardo se via imensamente excluído e, simultaneamente, exposto ao escárnio, obrigado a se trancar no guarda-roupa para obter uma mínima privacidade para a sua dor.

Como todos os recursos e maus-tratos não surtiram efeito para estigmatizá-lo de desequilibrado, encomendou-se o homicídio secreto, para que ele não incomodasse mais ninguém com a sua doçura dentro da sua residência.

É o crime mais chocante do Rio Grande do Sul. Será sempre brutal e inexplicável pelos laços de sangue envolvidos, por mais que o tempo passe, por mais que o réu saia do banco e da sala por não aguentar enxergar o que ele mesmo fez.

Pela primeira vez, no júri, forçosamente, Leandro está dando atenção para Bernardo.

Minha coluna no jornal Zero Hora, GZH, última página, Porto Alegre (RS), 23/3//2023

Fabrício Carpinejar

Tres Passos News

Direção e redação.

Published by
Tres Passos News
Tags: destaque

Recent Posts

Gelson Bridi é convidado da UERGS para ministrar Aula Magna do curso de Administração: Agronegócio

Uma comitiva composta por professores da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS…

35 minutos ago

Massa de ar polar chega ao RS nesta quinta-feira; também há alerta para chuva forte

O ingresso de uma massa de ar polar começa a derrubar as temperaturas no Rio Grande do Sul a…

48 minutos ago

Quem era a criança de 9 anos que perdeu a vida em acidente na RS-210, em São Martinho

Foi identificada como Júlia Vitória Blass do Nascimento, de nove anos, moradora de Santo Augusto,…

8 horas ago

Prefeito Ademir Cruz em reunião importante com a secretária estadual de Saúde

Terça-feira, dia 01 de abril, o Prefeito Ademir da Cruz participou de uma importante reunião…

8 horas ago

Chegada do frio e chuva dentro da média: veja como será o tempo em abril no RS

Porta de entrada do outono, abril deve ter temperatura ligeiramente acima da média climatológica e acumulados de chuva próximo…

12 horas ago

Homem preso por abuso se passava por criança em redes sociais e filmou estupro no RS

Os resultados dos laudos do Instituto-Geral de Perícias (IGP) sobre os conteúdos armazenados por um…

12 horas ago

This website uses cookies.