Três dias antes da enchente que atingiu o Vale do Taquari, Sueli Baldo Pereira, 84 anos, sentada no sofá de sua sala, no Centro de Muçum, olhou para a rua, calada, por alguns segundos, como se pressentisse.
— Vamos embora daqui, vai dar coisa ruim, vai morrer muita gente. Vai ser uma chuva muito feia — disse ao marido Nilson Pereira, 83 anos, que, incrédulo, achava que uma eventual cheia na região não superaria a de 2020.
A impressão do sapateiro aposentado naquele dia é corroborada pelos moradores da região atualmente, depois de concretizada a tragédia: as enxurradas foram mais fortes do que se esperava. E fez de Sueli uma das vítimas fatais. Esteve abraçada a Nilson o quanto pôde, até que a força da correnteza os separou, depois de 63 anos de casados.
Eles se conheceram ainda adolescentes, em Muçum, quando a atração da cidade eram os bailes promovidos na comunidade, regados a música e danças de salão. Costureira de mão cheia, Sueli passou a acompanhar o trabalho do marido e a parceria em casa também rendeu frutos no empreendedorismo. Passaram por Novo Hamburgo e Bento Gonçalves até retornarem para a terra onde se conheceram.
— Ela era muito alegre e não deixávamos de sair para dançar, de duas a três vezes por semana. Sempre juntos. Éramos “pés de valsa”. Tinha gente nova que não nos acompanhava. Aproveitamos a vida — lembra Nilson.
A vontade de viver era uma das marcas de Sueli e se materializou quando um tumor apareceu em seu seio esquerdo. Após o tratamento, que incluiu uma mastectomia, ela se curou do câncer, mas os dissabores não pararam por aí. Uma fratura em cada perna, em momentos diferentes, afastaram a dançarina dos bailes de que tanto gostava.
— Dois meses depois de ser recuperar de uma queda, veio outra. Não foi fácil. Foram, ao todo, nove cirurgias. Foi uma guerreira — afirma o viúvo.
O companheirismo dos dois continuou, seja em partidas de canastra ou nas excursões, duas vezes por ano, ao Parque de Águas Termais, em Piratuba, Santa Catarina. E, foi assim, até o dia que o nível do Rio Taquari subiu como nunca e invadiu a casa em que estavam na noite de segunda-feira (4). Sueli não deixa filhos.
Mais três vidas perdidas
Na ocasião, também perderam a vida a irmã de Nilson, Hedy Cattaneo, 87 anos, o companheiro dela, Gervasio Zanchetti, 90, e a cuidadora Leda Ana Spessatto, 65. Hedy tinha três filhos e é lembrada pela proatividade e entusiasmo para encarar a vida.
— Minha irmã era disposta para tudo. Não transparecia a idade que tinha — lembra Nilson.
Já Leda, cuidadora de Gervasio, era moradora do município de Encantado, mas trabalhava em Muçum, onde seu corpo foi encontrado, e em Roca Sales. Ela foi sepultada na sexta-feira (8), na Linha Pedro Álvares Cabral, em Anta Gorda.
— Era uma pessoa maravilhosa, nos conhecíamos há mais de três décadas e ela cuidava do meu pai há dois anos. Estava com muitas dificuldades pela idade avançada, então a Leda ajudava a Hedy — explica Jairo, filho de Gervasio.
Irmão de Jairo, Celso Zanchetti também tem lembranças bonitas da pessoa que zelou por seu pai.
— Dona Leda era uma fiel escudeira, que acompanhava os passeios, os bailes e cuidava dele com grande lealdade. Meu pai, só aceitava alguém em sua volta se gostasse da pessoa, pois do contrário demonstrava impaciência e ia pra cama — conta Celso.
As famílias Zanchetti e Spessatto são amigas de longa data, tanto que criaram a rede de lojas Zaspel, unindo os dois sobrenomes.
Nascido em Roca Sales, Gervasio foi morador da Linha Marques do Herval Picão, em Roca Sales, até os 88 anos quando a doença de Alzheimer tirou sua intensidade. Agricultor nas barrancas do Rio Taquari, cultivava milho, soja, mandioca e criva porcos e gado.
Ficou viúvo em 2010 e, como gostava de dançar, encontrou em Hedy, uma companheira com quem poderia frequentar os bailes da terceira idade. Em 2022, precisou recorrer aos cuidados de Leda, mas continuava a dançar com Hedy sempre que possível, assim como fizeram Nilson e Sueli.
— Um fato interessante é que, na sua juventude, o Taquari quase levou meu pai, que se safou pois sabia nadar. Mas agora, o rio foi traiçoeiro e as águas o alcançaram e ele não conseguia mais nadar — lamenta Celso.